terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Carnaval em Gondomar

 

                                                                1992



“Dizeis que viva o Entrudo
Aquele maldito home
Dá dois dias de fartura
Sete semanas de fome.”

A quadra deve aludir ao Domingo e terça-feira gorda, de fartura, quanto às sete semanas, serão os dias quaresmais, os quarenta dias.




Em Gondomar, o Carnaval era jogado em grande parte por mascaradas, bailes e jogos. De Domingo Gordo a Terça-feira, sucedem-se os cortejos de mascarados. O uso de água, farinha ou farelo, por vezes cinza fazia parte do Carnaval de outrora.
No entanto, indispensável ao Carnaval é a gritaria, o barulho que se faz com latas ou bombos.
Ontem e hoje, estes elementos estão presentes. Tratar-se-ão, talvez, de rituais de purificação anteriores à institucionalização da Quaresma pela Igreja.
Durante o Estado Novo,muitos foram proibidos por serem considerados excessivos.
 No entanto, a tradição mais duradoura é a do “Enterro do João”, que se realiza na noite de terça-feira gorda. Não é mais do que a adaptação regional da queima do Carnaval, que realiza, noutras regiões.






O “João”, patriarca benfeitor da sociedade, é um boneco cheio de palha ou moliço e vestido com roupas velhas e cara escondida por uma máscara. O cortejo que acompanha é uma caricatura de um verdadeiro funeral, com o padre, o sacristão, as viúvas, os filhos, os amigos e até o “tabeleão”. O grupo chora e grita: “Ai, João! Adeus João!” O cortejo para no local da queima e aí é lido o testamento do João. As deixas chistosas referem-se a cada um dos presentes ou conhecidos e constituem uma oportunidade para fazer crítica e pedir melhoramentos.
A queima marcará o fim dos dias de folia e dará início à seriedade quaresmal. O barulho e o fogo destinam-se a afugentar o mal, por isso a passagem do Inverno para a Primavera, do Carnaval para a Quaresma.







Desta forma, no último dia do Carnaval, na terça-feira gorda, faz-se um cortejo, cuja figura principal é um boneco. É o Enterro do João.
Ernesto Veiga de Oliveira circunscreve o “ Enterro do João” à região limítrofe do Porto, correspondente aproximadamente ao extremo sudeste das antigas Terras da Maia, estendendo-se por Ermesinde, Valongo, Maia e Gondomar.
A Tia Micas e a Ti Olívia Rasteira contaram-nos como era:
“Faz-se um espantalho de palha, mete-se numa carrela e a canalhada vai pelas ruas a gritar … Num ano, iam a fazer o enterro como se fosse da Igreja, levavam uma cruz de pau, tochas acesas e uma saia branca vestida e a servir de opa.
A Ti Olívia já fez muitos joões:
- “Quando não tínhamos palha eram videiras, Fazíamos um macaco, umas pernas, uns braços, púnhamos uma cabeça … púnhamo-la numa carrela!”
Perguntámos à Ti Olívia se não havia mais nada no João, respondeu que não. No entanto outra informante a D. Joaquina referiu que o João tinha que ter uma coisa para fazer chichi. Que havia mesmo quem gostasse de ver se tinha!
Já Veiga de Oliveira se referiu a este elemento erótico do “veretrum” ( vulgo pénis).
-Deitávamo-lo com folores.
-Adeus João! Quem há-de comer na tua tigela, João!
A viúva chorava:
- Ai meu “home”, que tanta falta me faz.
Alguém caridoso consolava:
- Deixa lá, mulher, deixa lá, tem paciência.
- Ó João, adeus João!
E a Ti Olívia continua:
- Fomos atrás do Enterro, fomos pela Boca adente, viemos por Quintão, fomos inté ao Taralhão….
Vinham homes e vinham tudo …. Com as saias brancas vestidas, a ler um livro. Faziam uma cruz …
Um ano fizemos um, no Calvário. Era o meu falecido pai, o Manel Leal, era o David Cete …. O Manel Leal, em cima de uma parede de laje que esborrachou toda … a discursar com uma saia branca vestida e outra saia branca a fazer de opa…  uma coberta e os homens a pegar, uns de cada ponta, pr´ a mode ir aquela pano atras do enterro … uns com palmas e com flores …
Deste relato se conclui que no “Enterro do João” vão incorporados os “familiares, nomeadamente, a “viúva” que chora pelo João, contribuindo para a beleza da sua morte, já que a morte deve ser bem chorada.
- Ó João! Ai João, deixa a carne e come o pão! Ó João!
O João com o seu clima de liberdade, de brincadeira, juntamente com máscaras, contribui para a libertação de todo um potencial de tendências obscuras e recalcadas durante todo o ano. O homem dá livre expansão a todos os seus desejos primários e pretende através da folia atingir a purificação.





Veiga de Oliveira dá notícia de um testamento. Em S. Cosme e em S. Pedro da Cova, muitas vezes, este não se faz. O responso e o elogio fúnebre do morto é mais usual. No entanto, as deixas ou testamento aparecem, por vezes.
No fim, o João é queimado pelo fogo, associado, quanto a nós, à morte do Inverno e do tempo em que se pode comer carne.
A queima do João marca o fim do Carnaval e o início da Quaresma. Entra-se, então, na quarta-feira de Cinzas. Neste dia, era usual destruírem-se todos os vestígios carnavalescos como serpentinas e tudo o mais.










Informantes:

Srª Olívia Rasteira – Ti Olívia Rasteira (90 anos) e Srª Micas Neves – Ti Micas, 73 anos, 1977, S. Cosme
D. Joaquina, Ti Quina, 1990, S. Pedro da Cova

Consultou-se, ainda:

Ernesto Veiga de Oliveira, O Enterro do João, Douro Litoral, 7ª série, Junta da Providência do Douro Litoral, 1956.







Os Carrapatos


Outrora em Gondomar, foi costume “deitar os carrapatos”, uso que consistia em gritar, através de um corno, críticas sociais de forma jocosa que os grupos achavam pertinentes
Essa tradição chega, mesmo, ao século XX:


“Carrapatos, carrapatões
Bichinhos e saltões
Todos dentro de uma panela
A ferrar no cú e sobrecu
Da ….. Amélia

Os circunstantes a quem era endereçados os Carrapatos condicionavam o texto que tinha que rimar. A crítica estava sempre presente


O Semanário “A Nossa Terra” , a 30 de janeiro de 1932, noticiava que na noite de 21 para 22 daquele mês foram presos em Valbom, pelo Sr. Regedor da Freguesia, uns quatro indivíduos por terem ido para um pinheiral buzinar palavrões indecentes ao que se costumava chamar “carrapatos”. Os presos estiveram na cadeia da Administração, uns dois dias e ao cabo desse tempo satisfizeram umas multas a fAvor das agremiações de beneficência que o Sr. Administrador do Concelho lhes impôs. E o Semanário comentou: “Foi remédio santo… tão santo que não se tornaram a ouvir as buzinadelas a altas horas da noite….. Pudera! Não que elas ardem! Camilo de Oliveira, 1933,  Vol II, p. 525



Uma quadra para o nosso tempo:

Carrapatos, carrapatões
Bichinhos e saltões
Todos dentro de uma marquise
A ferrar, ferrar, até desfazer a crise.

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