CORTE
MANUELINA
A
corte manuelina tinha especificidades únicas – era luxuosa e sofisticada, à
moda do seu tempo, mas não competia com o aparato de alguns outros centros
políticos da cristandade. No entanto, tinha um cunho exótico único, que a
distinguia das demais, e que dava prestígio ao seu rei. (…)
O
Venturoso viveu rodeado de um luxo próprio da sua condição, mas que ele
cultivava- “no tratamento da sua pessoa foi muito grandioso”, diz-nos Jerónimo
Osório. Também nesta matéria devemos ver no monarca um homem do seu tempo,
pois, como refere Rafael Moreira, nesta época “ a população urbana ocidental
mudou o rumo – e o sentido ideológico marcadamente religioso – dos seus padrões
de consumo - … e descobria o prazer de
gastar. Fez crescer a procura a níveis quantitativos antes impensáveis,
introduzindo critérios mais exigentes de variedade de oferta, premiou a
novidade técnica e o bom gosto, impondo a dinâmica do novo, do exuberante e do
mundano à civilização, de que a arte era apenas uma das manifestações.” Neste
contexto, “ os anos áureos manuelinos haviam introduzido um conceito de consumo
sumptuário e abastecimento de qualidade nos melhores centros estrangeiros que
deixava a perder de vista a rigidez das leis pragmáticas para restrição dos
excessos de luxo […], fazendo da riqueza exterior sinal de estatuto e
bem-estar: quase um dever cívico-Mais que mudança económica, tratou-se de
profunda transformação cultural, a que nenhum sector da sociedade foi imune.”[i]
O poderio económico do país levou mesmo Osório a afirmar que “parecia em seu
reinado terem mandado a pobreza em degredo.”[ii]
Rei
centralizador, procurou naturalmente reforçar a sua primazia através de um
cerimonial que o destacasse e que, ao mesmo tempo, satisfizesse os seus gostos
pessoais. Damião de Gois realça, por exemplo, o facto de o monarca ser “ de sua
pessoa galante e bem vestido, do que se prezava tanto que quase todos os dias
vestia alguma cousa nova”, e acrescenta que após o seu falecimento as suas
roupas foram repartidas pelos monarcas da casa real, e quase todas as igrejas
receberam tecidos. A consulta da lista incompleta dos seus bens de guarda-roupa
existentes aquando da sua morte permite-nos vislumbrar uma parte do fausto que
rodeava o monarca. O demais podemos imaginar, como fez recentemente Rafael
Moreira: “os inventários e descrições, estranhamentos raros, chegados até nós
permitem imaginar os seus interiores [das residências] a transbordar duma
riqueza inusitada: pinturas murais, alcatifas de estrado, razes e tapeçarias
temáticas tecidas em Bruxelas a revestir paredes, panos bordados, credências
que se armavam para expor porcelanas, salvas e gomis de prata e ouro; um
mobiliário inovador.”[iii]
O
rei seria provavelmente um melómano. Jerónimo Osório afirma que “deleitava-o
muito a música, mas não tanto que o afecto a ela o desencaminhasse dos negócios
do Estado”.[iv]
Esta ressalva do cronista serve para realçar o gosto do monarca, de que
encontramos vários testemunhos interessantes em Damião de Góis. Este diz-nos que
o monarca gostava muito de escutar música e fazia-o nas mais variadas
situações: ao deitar, às refeições, na caça, e mesmo enquanto cumpria as suas
funções governativas, pois quando estava a despachava a despachar “ havia
sempre na Câmara em que estava música de cravo e cantores”. Tocavam para si, “
estremados cantores e tangedores, que lhe vinham de todas as partes da Europa”
e, segundo o cronista teria “ uma das melhores capelas de quantos reis e príncipes
então viviam”. Por vezes, despachava enquanto passeava num “batel de feição de
galeota, toldado e embandeirado de seda” no Tejo e levava sempre consigo
músicos. Também se fazia acompanhar de executantes quando ia à caça, que lhe
tocavam e cantavam “fosse no campo, ou nas casas onde comia”.
Um
dos momentos culminantes do aparato régio ocorria no Natal, pois D. Manuel I
ceava sempre em público “com todo o estado de porteiros de maça, reis de armas,
trombetas, atabales, charamelas”. Ao longo do ano, todos os domingos e dias
santos, o monarca “jantava e ceava com música, de charamelas, sacabuxas,
cornetas, harpas, tamboris e rabecas, e nas festas principais com atabales e
trombetas”; também tinha “músicos mouriscos que cantavam e tangiam com alaúdes
e pandeiros”. Nestes dias, quando estava casado, “dava serão às damas e
galantes, em que todos dançavam e bailavam, e ele algumas vezes”.
(….)
a corte assistiu também às representações teatrais realizadas por Gil Vicente.
Este compôs cerca de 20 textos durante o reinado manuelino, que foram
apresentados publicamente no paço.
(…)
o rei frequentemente mandava correr touros, ou organizava jogos de canas, em
que participava por vezes.
À
boa maneira medieval, o rei tinha bobos na corte – “chocarreiros castelhanos,
com os motes e ditos dos quais folgava, não porque gostasse tanto do que
diziam, como o fazia das dissimuladas repreensões que com jeitos e palavras
trocadas davam aos moradores de sua casa, fazendo-lhes conhecer as manhas,
vícios e modos que tinham”. Independentemente da utilidade social e moral dos
mofadores, sugerida pelo cronista, a sua origem e derivado remete-nos para
outra realidade da corte manuelina – o seu bilinguismo, em parte derivado,
tanto quanto se sabe, do ouvido duro das rainhas que tinham dificuldade em
entender o português e que encontraram um ambiente em que como hoje, o
castelhano é relativamente fácil de compreender. Sintomaticamente, Gil Vicente,
neste período, escreveu parte significativa das suas peças em castelhano.
Talvez
D. Manuel jogasse xadrez, pois no inventário do seu guarda-roupa está
assinalado “um jogo de xadrez da Índia, de marfim de figuras de elefantes e
cavalos e homens dourados em partes, do qual jogo falece uma dama e um peão”.[v]
Se esta referência não nos garante, só por si, que o monarca se interessasse
pessoalmente pelo jogo, ela leva-nos a uma outra característica da corte do
Venturoso – o colorido especial que lhe era dado pelo exotismo oriundo do
além-mar.
O
Exótico
(…)
Em
Portugal, terá havido, sem dúvida, nessa altura, uma revolução dos sabores,
pois quer o açúcar quer as especiarias começaram a ser usadas com alguma
intensidade. O monarca oferecia pequenas quantidades destes produtos quer a
instituições quer a indivíduos. A Excelente Senhora recebia todos os anos
especiarias e açúcar, bem como como d. Isabel, a irmã do rei, que tinha por
mercê anual dois arráteis de pimenta e de benjoim, e um arrátel de cravo, de
gengibre, de noz-moscada, de maças, de malagueta (…). Também D. Beatriz, a mãe
do monarca, dispunha de especiarias na sua dispensa (…) quantidades apreciáveis
de especiarias asiáticas (…) malagueta, açúcar, sândalo, lenho aloés, incenso,
Cânfora e seis “piparotes de conserva da ilha”
(…)
a criadagem também podia experimentar novos paladares e algumas porções de
especiarias sairiam discretamente dessas cozinhas dos poderosos para animar as
refeições de outros.
(…)
É de crer que fosse fácil encontrar macacos e papagaios, mesmo em casas
humildes.
(…)
Não admira que nesta época não tenham sido impressos livros em Portugal sobre
os territórios ultramarinos (…) Os navegadores que sustentavam o império eram
naturais dos mais variados recantos do
país. (…) Pouca gente precisaria de adquirir um livro para se inteirar sobre a
configuração de um africano ou de um indiano, ou sobre as formas de um
elefante, de uma girafa ou até de um rinoceronte. Havia muita gente capaz de os
descrever a quem ainda não os tivesse visto. Além disso, em Lisboa, que seria o
maior mercado potencial para a compra desses livros, era precisamente onde se
concentrava grande parte dessa diversidade. Góis lembra que, quando desfilava
em Lisboa, o cortejo régio incluía elefantes e, nomeadamente, um rinoceronte. (….)
Durër elaborou, em 1515, para o público alemão, e no mesmo ano circulava em
Roterdão igualmente um texto sobre a Forma et Natura Costumi delo Rinoceronte e
um outro artista Burgkmair, fez mais uma gravura da fera. (…)
Sabedor
desta realidade, D. Manuel procurou explorá-la, quando enviou um elefente ao
papa, e depois quando lhe ofereceu o rinoceronte. Se, de uma forma geral, era a
corte portuguesa que absorvia os gostos e os estilos artísticos que tinham por
focos irradiadores a Itália e os Países Baixos, nesta matéria o rei de Portugal
podia demonstrar a sua singularidade aos olhos dos Europeus.
Entre
os produtos novos por que o mundo se deixou fascinar rapidamente conta-se a
porcelana Chinesa.
No
caso do rei, a presença de peças asiáticas no seu guarda- roupa é muito
significativa: incluía muitos tecidos, mas sobressaem as joias, muitas das
quais oferecidas por soberanos asiáticos ou por fidalgos portugueses. (…) um
Kris com a bainha cheia de rubis e o punho em cristal, que lhe fora oferecido
por Simão da Silveira, ou um punhal “com muitos diamantes e rubis com sua
bainha de ouro” ou uma cimitarra guarnecida
de prata dourada; (…) dois Kris, um com sete rubis e outro com oito,
cujos punhos tinham umas imagens de “mulheres de corno” e as bainhas eram
forradas a ouro. (…) uma alcatifa de seda de cores (…) que fora oferecida pelo
rei de Melinde (…) porcelanas, um “vasozinho de prata” e um caderno de folhas
de papel “de letras e pinturas dos chins que parecem santos que tem cobertura
azul”.[vi]
Se alguma vez folheou este livro, o rei terá contactado, muito provavelmente,
com o testemunho de uma religião desconhecida, de que os Europeus só tomariam
consciência passados alguns anos – o budismo.
O brilho do norte
Em
Portugal, foi a arte do norte da Europa que seduziu o público e o mercado, o
que resultou não só da qualidade dos artistas flamengos, mas também das
relações comerciais e políticas intensas que ligavam Portugal aos Países
Baixos. (..)
Foram,
por exemplo iluminadores flamengos que realizaram os trabalhos magníficos do
Livro de Horas da rainha D. Leonor, irmã do rei, e o Livro de Horas dito de D.
Manuel I, hoje em dia um dos tesouros do
Museu Nacional de Arte Antiga, que foi realizado por António de
Holanda e Simão Bening e que contém, “o maior repertório de paisagem existente
em Portugal nos inícios do século XVI”. Também as iluminuras dos primeiros
livros de Leitura Nova tiveram mão de António de Holanda. No domínio da
tapeçaria, os portugueses recorreram igualmente à Flandres. (…) Já haviam sido
produzidas aí as tapeçarias que evocavam a conquista de Arzila, quando D.
Manuel I encomendou uma série de 26 peças para celebrar a viagem de Vasco da
Gama, que foram colocadas nos Claustros dos Jerónimos.(…)
Por
esta altura foram importadas muitas estátuas (…) Os arquipélagos da madeira e Açores foram
grandes consumidores (…). O reinado de D. Manuel I corresponde ao apogeu do
açúcar madeirense (…).
Bibliografia:
Freire,
Anselmo Brancaamp, “Inventário da
guarda-roupa de D. Manuel I”, in Archivo Histórico Portuguez, Lisboa, vol
II, 1904, pp.381-417
Moreira,
Rafael, “A importação de obras de arte em
Portugal no século XVI, in Da Flandres e do Ocidente. Escultura importada,
Lisboa, Casa Museu Dr. Anastácio Gonçalves, 2002.
Costa,
João Paulo Oliveira, D. Manuel I,
Círculo de Leitores, Lisboa 2005.
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